Uma terapia contra as leucemias de células B totalmente personalizada para o paciente. São retiradas células do sistema imunológico, modificadas geneticamente para que consigam localizar e destruir as células cancerígenas, multiplicam-se essas células em laboratório, que são reinseridas no paciente, levando à cura do câncer. Essa é uma das mais avançadas técnicas de engenharia genética - a CAR-T - e que está muito próxima de começar a ser testada, de forma inédita, em pacientes brasileiros. Pesquisadores da Fiocruz e do INCA que estudam a tecnologia há anos e já demonstraram resultados positivos do uso da técnica em animais, estão planejando e preparando o início da etapa clínica da pesquisa. A longo prazo, o objetivo é oferecer a terapia no sistema público de saúde.
Geralmente o sistema imunológico do nosso corpo não reconhece as células da leucemia do tipo B, o que leva ao crescimento desenfreado do câncer. "A ideia desta terapia é pegar as células de defesa, modificar geneticamente dando esse gene artificial, conhecido como CAR, multiplicar essas células em laboratório e devolvê-las ao paciente.", conta Martín Bonamino, pesquisador da Fiocruz e Inca, e coordenador da pesquisa. "E o gene CAR – sigla em inglês de Receptor Quimérico de Antígeno – gera uma proteína que vai ficar na membrana da célula produzida em laboratório, e estando na membrana, ela consegue direcionar a célula para reconhecer uma proteína que está na membrana da célula do tumor", explica Martín.
A terapia CAR-T vem sendo desenvolvida e estudada desde a década de 1990. Na Europa e Estados Unidos, a terapia já é comercializada, com custo total que chega a ultrapassar um milhão de dólares por paciente. "As leucemias agudas B são o tumor mais prevalente em crianças. Com a quimioterapia, de 80 a 85% dos pacientes conseguem ser curados, mas aqueles que não respondem aos medicamentos, têm um prognóstico muito ruim. Os dados levantados mostram que 90% desses pacientes que não foram curados pela quimioterapia tiveram a leucemia eliminada pela CAR-T em poucas semanas, e cerca de 60% destes pacientes continuarão sem leucemia durante seu acompanhamento", afirma Martín, explicando o otimismo com a técnica.
A pesquisa no Brasil é realizada pelo Grupo de Imunoterapia e Terapia Gênica da Coordenação de Pesquisa do INCA, e contou com parceria com a Unicamp e Centro Infantil Boldrini, e financiamento do Inca, Fiocruz, CNPq, Faperj e Fundação do Câncer, por meio do edital do Programa de Oncobiologia.
CAR-T nacional
Um dos diferenciais da técnica brasileira, é que além de reconhecer a leucemia do tipo B, as células geneticamente modificadas também são capazes de reconhecer o vírus Epstein Barr, envolvido em várias complicações hematológicas, desde a mononucleose, a linfomas e quadros de proliferação celular descontrolada em pacientes de com baixa imunidade devido a tratamentos como o transplante de medula óssea.
Outro diferencial da tecnologia desenvolvida pelo grupo é a forma como os cientistas fazem a mudança no gene do linfócito-T: ao invés de utilizar um vírus para infectar a célula do sistema imune e promover a mudança genética, os pesquisadores utilizam um fragmento não infeccioso de DNA. "Nosso grupo é um dos primeiros fora da Europa e Estados Unidos a conseguir levar o gene CAR para o núcleo da célula sem usar o vírus. E isso tem uma série de vantagens potenciais que estamos explorando, entre elas, a redução no custo", diz Martín.
Testes clínicos
Os resultados positivos da etapa da pesquisa em animais foram recentemente publicados em um artigo na revista Human Gene Therapy, e agora, os grupo trabalha no planejamento de uma pesquisa com pacientes. Os cientistas estão na fase de captação de recursos para o início dos testes clínicos, que deve ser seguida pela aprovação das agências reguladoras, até que possa ser iniciada a avaliação junto aos pacientes. Ou seja: os primeiros resultados da etapa clínica não devem estar prontos antes de 2021.
O grande objetivo da pesquisa? Que a terapia possa ser disponibilizada para pacientes de leucemia em todo o Brasil. "Nós (integrantes do grupo de pesquisa) somos de duas instituições públicas que tem a função de prover soluções em saúde para a população", afirma Martín. "Uma célula modificada geneticamente é tão individual que foge à lógica do produto de prateleira, que é o fármaco. Apesar disso, as indústrias farmacêuticas entraram nesse campo, e eu não vejo porque nossas plataformas de produção de remédios não possa trabalhar sob essa lógica também. Nossa ideia é que possamos criar um protocolo que permita gerar as células em diferentes lugares, porque ele é simples, rápido e com um custo não proibitivo".
Além de fazer os testes em humanos, diferentes linhas de pesquisa do grupo investigam possibilidades de melhoria da técnica, para que possa ser utilizada inclusive em pacientes com outros tipos de câncer - como o câncer de pulmão. "Uma das linhas de pesquisa aqui do laboratório é como melhorar a terapia CAR para aplicá-la em tumores sólidos - como o câncer de mama ou de pulmão. É onde está o desafio agora, tanto aqui como internacionalmente", afirma Leonardo Chicaybam, tecnologista da Fiocruz, integrante do grupo de pesquisa e um dos autores do trabalho recém publicado.
Por Rosa Maria Mattos, jornalista de Ciência, responsável pelo Núcleo de Divulgação do Programa de Oncobiologia.
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