Conhecer melhor as doenças, para que os serviços de saúde possam oferecer melhores intervenções. Esse princípio tão simples orienta o trabalho de um grupo de pesquisa do Instituto Nacional de Câncer que investiga alterações genéticas em leucemias linfoblásticas agudas - as LLAs - um tipo de câncer que acomete principalmente crianças. Apesar das LLAs parecerem já ser um tipo bem específico de câncer, existem inúmeras diferenças entre os subtipos, muitas ainda desconhecidas pela ciência, e que podem ter um papel decisivo na condução clínica, e consequentemente, no tratamento e cura dos pacientes.
O grupo é coordenado pela pesquisadora Mariana Emerenciano, e trabalha realizando análises moleculares para entender quais são as alterações genéticas das células leucêmicas, e se essas alterações podem auxiliar na caracterização de diferentes subtipos de leucemia. "Para alguns tipos de câncer, faz sentido a gente falar de identificação precoce - mas no caso das leucemias linfoblásticas agudas, que acometem crianças de menos de um ano, não. O mais importante para nós é caracterizar melhor o câncer: quanto mais específico e refinado for o diagnóstico, os médicos conseguem tomar melhores decisões na prescrição dos tratamentos", afirma Mariana.
Inclusive na decisão de… evitar certos tratamentos. "Muitas das quimioterapias são fortes, agressivas, e podem causar cardiopatia, problema no coração, problemas neurológicos, atraso no desenvolvimento, infertilidade. Aqui, nós trabalhamos na etapa de geração do conhecimento, então participamos, indiretamente, da busca por uma melhor classificação dos pacientes. Atualmente existe a classificação de baixo risco, alto risco, e uma gama de pacientes que são considerados intermediários. Ou seja, esse grupo intermediário não possui marcadores contundentes para serem designados nas outras duas categorias, e precisa ser melhor conhecido, para que os médicos arrisquem menos na indicação do melhor tratamento".
A pesquisa é translacional, ou seja, uma investigação científica em biologia básica que parte das necessidades dos médicos e pacientes, e envolve uma forte rede de colaboração. Os médicos participantes enviam amostras de sangue ou de medula óssea de pacientes com LLA internados em diversos hospitais no Brasil, chegando a mais de 150 amostras de pacientes por ano.
"Ao receber as amostras, a gente quer entender porque acontece uma alteração genética, e porque essa alteração deixa a célula mais agressiva", afirma Mariana. Ao final do trabalho de caracterização in vitro, os pesquisadores enviam aos médicos um relatório completíssimo, com testes genéticos de ponta que descrevem as células leucêmicas daquele paciente, dando informações mais completas aos médicos.
"Grosseiramente, os protocolos terapêuticos para as leucemias linfoblásticas agudas, hoje, levam em conta dados como a idade, a leucometria, subtipo celular e se o paciente responde bem ou não à primeira semana de corticoide. Então oferecer um relatório às equipes médicas pode explicar, por exemplo, porque um paciente que tinha tudo para ir bem não está respondendo ao tratamento. Outro impacto positivo é a troca científica, já que muitas vezes apresentamos aos serviços hospitalares marcadores com efeito prognóstico que estão sendo recentemente descobertos, o que aquela descoberta está gerando de impacto em outros protocolos clínicos pelo mundo e enviamos artigos para que leiam mais sobre o assunto", conta Mariana.
Sem contar o aprendizado com os médicos. "Somos, na grande maioria, biólogos e biomédicos, e o que chega até nós são tubos de ensaio com amostras de sangue. E graças ao contato com esses profissionais, ficamos sabendo das características clínicas dos pacientes, e também sobre a vida dessas pessoas, suas dificuldades, a realidade social onde as pessoas estão inseridas. A gente tem essa noção do todo - e isso é muito importante para o meu grupo também, é um fator de motivação adicional para os alunos, para que eles entendam a complexidade e a importância do trabalho deles", afirma a pesquisadora.
Genes FLT3 e CRLF2 e Osteopontina
Em uma pesquisa recente, em parceria com o grupo da pesquisadora Etel Gimba, que também integra o Programa de Oncobiologia, os cientistas trabalharam investigando o papel de uma molécula chamada osteopontina em uma leucemia que acomete bebês de menos de 1 ano de idade, que tem um rearranjo no gene MLL, e que é muito agressiva, levando a morte de metade das crianças com esta doença.
"Publicamos recentemente um artigo mostrando que a osteopontina poderia favorecer a capacidade das células leucêmicas de invadir o sistema nervoso central", conta Mariana. "E se a gente comprova isso, essa molécula pode ser um novo biomarcador dentro do contexto das leucemias linfoblásticas agudas. Se no diagnóstico for possível detectar a superexpressão dessa molécula, isso poderia predizer a probabilidade de ter invasão de sistema nervoso central, e seria possível atuar na condução clínica daquele paciente, para prevenir que as células leucêmicas cheguem ao sistema nervoso central". Para uma aplicação como esta, no entanto, ainda seriam necessárias outras pesquisas.
Outro projeto sendo conduzido pelo grupo é buscar entender os mecanismos moleculares que levam a superexpressão de dois genes, que estão associados ao pior prognóstico das LLAs: os genes FLT3 e CRLF2. "Nossa pergunta é: porque esses genes são superexpressos nos pacientes? Estamos trabalhando com bioinformática, em parceria com a Dra. Mariana Boroni, e outras metodologias na busca pela alteração do DNA que leva a essa desregulação", diz Mariana.
Para ela, além da importância de explicar biologicamente os fenômenos associados ao câncer, a pesquisa pode também significar uma esperança aos pacientes. "A superexpressão de FLT3 é muito frequente em pacientes com rearranjo de MLL, que vão muito mal e tem pouca opção terapêutica. Se nós conseguirmos descobrir porque eles têm essa alteração, possivelmente vamos conseguir interferir nela. Assim como existem alguns tratamentos quimioterápicos que interferem diretamente em uma alteração molecular, a gente pode suscitar o desenvolvimento de novos medicamentos que atuem nesses marcadores ou revertermos a alteração no DNA que causa a superexpressão", afirma.
Sobre a pergunta, a principal hipótese do grupo é que as alterações que levam a superexpressão desses genes está numa região do genoma que até pouco tempo atrás era chamada de DNA lixo, os íntrons, sequências genéticas que se pensavam não servir pra nada, mas que pesquisas recentes vem mostrando ter importância decisiva. "Estamos apostando nisso, que existem alterações que podem estar distribuídas no genoma, em locais não previsíveis, vamos dizer assim, e que podem estar desregulando a expressão gênica. Por isso a bioinformática tem sido tão fundamental, porque é uma busca de agulha no palheiro", conclui.
Por Rosa Maria Mattos, jornalista de Ciência, responsável pelo Núcleo de Divulgação do Programa de Oncobiologia.
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