Desestimular o uso de agrotóxicos e investir na produção de alimentos orgânicos e agroecológicos – ou facilitar o uso de novos agrotóxicos, e fortalecer a agroindústria, que produz pouca variedade de alimentos e em larga escala? Dois projetos de lei tramitam, em direções opostas, na Câmara dos Deputados. A qualquer momento pode ser colocado em votação o PL 6.299/2002, de autoria do ex- ministro da agricultura Blairo Maggi, que altera a regra atual para desburocratizar a liberação de novas substâncias químicas, além facilitar a comercialização dos produtos e sua propaganda.
Como contraponto, um projeto de lei que institui a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (o PL 6670/2016) está sendo analisada por uma comissão especial. O projeto, que foi proposto pela sociedade civil, prevê medidas que restrinjam o uso de agrotóxicos e investimento em alimentos agroecológicos e orgânicos, e aguarda o parecer final, para que seja enviado ao plenário. Caso aprovada, a política de redução de agrotóxicos ainda precisará ser analisada pelo Senado. Já o PL que facilita os agrotóxicos, seguiria direto para a sanção presidencial.
Conversamos com a professora de segurança de alimentos, Maria Lúcia Lopes, do Instituto de Nutrição da UFRJ, sobre agrotóxicos, sistema de produção de alimentos e câncer. Ela alerta sobre a dificuldade de produzir pesquisas científicas que, isoladamente, comprovem que o câncer é provocado por agrotóxicos presentes nos alimentos. "É importante que as pessoas fiquem atentas, investir na saúde de forma preventiva não é frescura. E a escolha dos alimentos que consumimos é decisiva".
Qual a relação do uso dos agrotóxicos nas lavouras de alimentos e o câncer?
O fato de não existirem evidências concretas de que um determinado princípio ativo cause câncer no ser humano, não indica que ele não cause. Essa falta de evidência não quer dizer que não exista uma relação de causa e efeito. Uma coisa importante é que quando falamos de agrotóxicos estamos falando de mais de 200 princípios ativos, mais de duas mil formulações. Para que se pudesse investigar uma associação entre o uso de agrotóxicos na produção de alimentos e a incidência e prevalência de diferentes tipos câncer, seriam necessários diversos estudos, muito bem desenhados e conduzidos com rigor científico. Ainda assim, por exemplo, se o produtor de alimentos utiliza diversos produtos químicos em uma mesma lavoura, ao longo de um período de cinco, dez anos, e se o paciente, por exemplo, consome diversos tipos de alimentos contendo resíduos desses produtos, como o pesquisador vai confirmar uma eventual relação de causa e efeito entre o agrotóxico e o câncer? É muito complexo fazer o desenho experimental de uma pesquisa que possa mostrar a ligação direta entre o câncer e o consumo de alimentos produzidos com agrotóxicos.
Por outro lado, existem alguns estudos que mostram que os trabalhadores e trabalhadoras do campo que aplicam os agrotóxicos, às vezes comunidades e cidades inteiras, estão manifestando diferentes sintomas e doenças, inclusive câncer. Há evidências de que essas doenças e sintomas estão associados à aplicação inadequada desses produtos. E a gente sabe que o sistema de fiscalização de aquisição e aplicação desses produtos no Brasil é extremamente precário. Não é seguro colocar apenas na mão desses órgãos fiscalizadores a responsabilidade de fazer cumprir o uso correto desses produtos. Deveríamos ter um conjunto de ações educativas, normativas e fiscais mais eficientes para inibir o uso indiscriminado de agrotóxicos. Além disso o incentivo a sistemas de produção de alimentos sem uso de agrotóxicos traria grandes benefícios sociais, ambientais e para a saúde da população.
Saiu uma matéria a pouco tempo sobre proibição de aditivos químicos pelo FDA (Agência norte americana que faz o controle dos alimentos), que mostrou que é comum usar um agrotóxico por muitos anos, até que se encontrem evidências do risco desse produto, para que ele seja efetivamente proibido. Isso também acontece com aditivos químicos, que são utilizados por muitos anos pela indústria, até que as evidências passem a ser fortes o suficiente para que haja a proibição do uso. Ou seja: quanta gente usou até ser proibido? Quanta gente não morreu e sofreu outras consequências até que se comprovasse os riscos?
Caso o PL 6.299/2002 seja aprovado como lei, a saúde da população brasileira pode estar em risco?
Sim, sem dúvida. Essa proposta de mudança na legislação flexibiliza as regras de importação e aprovação, mas deixa de lado a preocupação com a saúde das pessoas. Nas lavouras do Brasil são usados, inclusive, produtos que são proibidos por lei. Isto porque não temos um sistema adequado de controle. E facilitar o uso, a importação e a aprovação desses produtos sem passar por órgãos de controle comprometidos com a saúde das pessoas é promover um olhar distorcido. O ideal seria se tivéssemos um controle maior, e que envolvesse instituições que estão preocupadas com o aspecto ambiental, o aspecto social, o aspecto de saúde, e não só o aspecto de produção comercial.
Como é o sistema de produção de alimentos que vigora atualmente no Brasil?
Hoje em dia, o que seria mais produtivo para quem investe no agronegócio? Trabalhar com uma diversidade menor de produtos, produtos que sejam mais padronizados, que têm um mesmo ritmo de crescimento, que atingem um mesmo tamanho, amadurecem na mesma época e podem ser colhidos ao mesmo tempo. Assim se tem uma cadeia produtiva que funciona de uma forma homogênea. E o contraponto disso é a diversidade. É produzir diferentes espécies, diferentes tipos de alimentos, e isso é mais difícil porque as lavouras têm ritmos biológicos diferentes, safras diferentes e tamanhos de plantas diferentes, por exemplo. E aí não há uma máquina que possa colher tudo. Este tipo de produção exige mais trabalho manual. Só que é preciso uma decisão sobre o que se quer com a própria alimentação. Se você pensar apenas no aspecto macroeconômico, sai mais barato produzir uma cultura só, o que preconiza concentração de terra e de renda, já que são grandes produtores em grandes áreas produzindo poucas espécies vegetais. Ao passo que quando você investe em diversidade de culturas, você emprega mais gente e valoriza as diferentes formas de trabalho das pessoas envolvidas na produção. O investimento na produção diversificada contribui também para a sustentabilidade ambiental porque quando se produz só milho, por exemplo, se implanta o chamado deserto verde, o solo fica empobrecido e é preciso aplicar constantemente produtos para recuperar a qualidade desse solo.
Recentemente um estudo foi publicado na França que afirmou que consumir alimentos orgânicos (produzidos sem o uso de agrotóxicos) é prevenir o câncer. O que você achou da pesquisa?
Existem algumas críticas em relação a esse artigo porque, apesar de ter sido feito com uma grande população de quase 70 mil pessoas, o acompanhamento dos consumidores não foi feito por um longo período. Então eu não entendo como se fosse um artigo conclusivo, mas ele traz, sim, evidências de que possa haver relação entre o consumo de alimentos orgânicos e a prevenção de ocorrência de diferentes tipos de câncer. Acho que onde há fumaça há fogo, e que essas evidências precisam ser mais investigadas, é um importante estudo a ser feito.
Como você responderia às pessoas que acreditam que, sem os agrotóxicos, não seria possível ter acesso a alimentos em quantidade suficiente para toda a população? É o uso de agrotóxicos que possibilita que os alimentos cheguem à casa dos brasileiros com preço acessível?
Não. Quando falamos de acesso, temos que considerar a que tipo de alimentos temos acesso hoje. Certamente um alimento que não é o melhor que a gente poderia ter. Na medida em que temos uma população mais alerta e preocupada com a questão da saúde, isso tende a mudar. Quando você revê um pouco seus hábitos, começa a se preocupar com a qualidade daquilo que está consumindo, resolve investir em alimentos que têm menor quantidade de aditivos químicos, agrotóxicos e produtos sintéticos, e se preocupa em consumir uma alimentação mais natural, você está criando demandas por produtos mais saudáveis. Só que isso, sozinho, não resolve a questão. Ao contrário do que muita gente acha, a produção de alimentos orgânicos e agroecológicos envolve muita tecnologia e muito conhecimento técnico, cientifico e também conhecimento tradicional, da própria população. Só que, o fato de um produtor ter a consciência de uma produção mais sustentável resolve a produção de alimentos orgânicos para todos? A conscientização do produtor, sozinha, também não resolveria. Junto com o consumidor consciente, e um agricultor disposto a produzir orgânicos, são necessárias políticas públicas. Ou seja precisamos que os nossos governantes aprovem políticas públicas e invistam em programas que financiem e viabilizem que as famílias fiquem no campo, produzindo alimentos saudáveis, ao invés de serem obrigadas a migrar para cidades, para viver em condições subhumanas.
E qual o papel do consumidor nesse sistema?
Precisamos ter um olhar mais cuidadoso e uma atitude menos comodista frente a nossa rotina, ao nosso dia-a-dia. Se a gente compara com os nossos avós e nossos pais, o perfil da alimentação era muito diferente. Não que eu seja contra os avanços tecnológicos, mas você não pode investir em tecnologias que tragam praticidade mas não se preocupem com a saúde do ser humano, as coisas não podem estar tão desconectadas assim. A gente precisa agir mais preventivamente em relação ao câncer, cardiopatias e doenças crônicas em geral. Existem muitas evidências e dados epidemiológicos mostrando o avanço dessas doenças. Não podemos continuar fechando os olhos para o que estamos comendo. A gente fala muito do agrotóxico, mas o sistema alimentar que adotamos hoje envolve toda uma cadeia produtiva que inclui, também, as indústrias dos alimentos. As práticas adotadas por esse setor, tem um papel fundamental na saúde da população. Precisamos pressionar a indústria no sentido de que produzam alimentos mais saudáveis, com menos aditivos químicos, com matérias primas de melhor qualidade, com menos resíduos de agrotóxicos. E é importante que o consumidor faça o consumo consciente, que exerça uma pressão: quanto mais bem informada a população estiver, mais vai exigir qualidade. É importante que as pessoas fiquem atentas para o fato de que investir na saúde preventivamente não é frescura. Não é preciosismo.
Existem alternativas?
Eu sou fã da agroecologia, dos alimentos orgânicos, porque vejo que ali você tem preocupação sim com o alimento que é produzido, mas também uma preocupação social e ambiental, uma preocupação com a qualidade de vida dos animais e das pessoas envolvidas no processo produtivo. Quando se investe na agroecologia e nos alimentos orgânicos se está investindo em toda uma cadeia produtiva, em quem está consumindo, em quem está produzindo, no que está sendo produzido, no caso dos animais, para que eles não sofram maus tratos ou sejam tratados em condições degradantes. Comprar alimentos, assim como outros bens, é um ato político. Quando se investe em um produto que respeita o meio ambiente, você está investindo e fortalecendo essa cadeia. Então é muito importante a gente debater, refletir, pensar criticamente ao invés de reproduzir coisas que não estão dando certo, definitivamente. E me preocupa muito que os grupos econômicos e políticos, detentores de tanto poder, estejam desconectados de todas essas preocupações e focados simplesmente em fortalecer um sistema produtivo que valoriza apenas a balança comercial e não atende a questão do bem-estar e saúde da população, a sustentabilidade ambiental e a preocupação social.
Por Rosa Maria Mattos, jornalista de Ciência, responsável pelo Núcleo de Divulgação do Programa de Oncobiologia.
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